quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Segunda Noite

A noite de sábado começou com a aula-espetáculo “Gingado: frevo e improviso”, encenada por Antonio Meira e dirigida por Marina Abib, ambos integrantes do elenco da Antonio Nóbrega Companhia de Dança (SP).


Nóbrega estuda e mapeia há mais de 40 anos, músicas e danças festivas do nordeste, principalmente, Pernambuco, e as incorpora para a cena. Tais estudos foram pano pra manga para a aula-espetáculo “Naturalmente: teoria e jogo de uma dançabrasileira” (2009, disponível em DVD), que parece ter sido referência para a criação de Antonio Meira e Marina Abib, e que decorre de tradição de aulas-espetáculos criada por Ariano Suassuna, líder do Movimento Armorial (1970), do qual Nóbrega e muitos outros artistas como André Luiz Madureira, diretor do Balé Popular do Recife, fizeram parte. 

“Gingado: frevo e improviso” convidou dez pessoas da plateia para participar de um aquecimento brincante, para aprender passos de frevo e, depois, improvisar.


Logo em seguida o grupo convidado de dança do ventre de Três Lagoas, Expressão, apresentou “Shik Shak Shok”. A primeira coreografia da Mostra Aberta foi “Opostos”, do Ballet Isadora Duncan, que além de opor branco e preto, no figurino – uma cor na frente e outra atrás – criou oposições por meio de aproximações e afastamentos, níveis alto e nível baixo, frente e trás.


A oposição está em muitos movimentos na natureza, como os de sístole e diástole, do coração, e na própria respiração, em que a caixa torácica abre e fecha, e é um parâmetro por meio do qual a técnica de Martha Graham e Lester Horton, por exemplo, se sistematizaram. Tomar essas oposições do ambiente como ativadores de criação pode enriquecer as possibilidades de movimento para além da técnica e dos passos. O que ficou em destaque, também, foi a projeção dos movimentos no espaço, a presença cênica dos dançarinos. 

“Contos do Encantamento”, do Ballet Só Dança Auxiliadora, coreografado por Gláucia da Silva, apresentou uma composição cuja questão foram desenhos no espaço e a alternância entre conjuntos, trios, movimentos corais e canons, com a técnica do balé e estética de balés de repertório como "A Bela Adormecida" (Marius Petipá, 1890). 

 O grupo Armazém 67, de Campo Grande, apresentou “Resident Evil”, mesmo nome do filme (traduzido para o português como "Hóspede maldito"), lançado em 2004, baseado em um game homônimo. Interessante observar que o caráter maquínico das batidas da música está presente na movimentação dos dançarinos. Houve oposição entre frente e trás no posicionamento dos grupos e trios.

A Isa Yasmin Cia. de Dança apresentou “Clássicos & Véus”. A variação no uso do espaço estava em consonância com a mudança no pulso da música. O que singulariza a companhia, são os corpos singulares que a compõe. São mulheres dançando essa maneira de se mover e de pensar tão feminina. A composição desenhava linhas retas, círculos e diagonais pelo espaço.


O Grupo Seishun, da Associação Okinawa de Campo Grande, levou para a segunda noite do Festival “Gambare”, que significa “força” e “incentivo”, em japonês. A dança do Seishun combina artes marciais milenares com cultura pop japonesa, como animes. É, geralmente, apresentada nos festivais Yosaikoi Soran, uma adaptação brasileira ao “carnaval” japonês, que tem o objetivo de homenagear e divulgar a tradição japonesa no Brasil – idealizado pelo empresário Hideaki Ijima. Com gritos que acompanham movimentos expansivos, fortes e rápidos executados, simultaneamente, pelos 13 dançarinos, Seishun mostra sua força e alegria em grupo. Para saber um pouco mais sobre essa dança e o contexto em que foi criada, leia essa matéria escrita por Cristiane A. Sato.

Os bailarinos convidados Denise Rosa e Caio Baratelli, apresentaram os solos “Alegria” e “Estudos”, coreografados por Beatriz de Almeida. Ana Lucia El Daher, trouxe o solo “A espera”, criado por Neide Garrido. Os primeiros, neoclássicos – estética bastante presente no Ballet de Stuttgart, onde Beatriz trabalhou por 20 anos –, o último, dança moderna.


 O último solo, por apresentar uma narrativa e e pela maturidade cênica da dançarina que transbordou emoção, para além de passos e técnica bem executadas, serve de referência para perceber e refletir sobre o que conversamos em roda, pelas manhãs, sobre a relação entre técnica e dramaturgia. 


Tomei como exemplo um dos argumentos de Jean Georges Noverre, criador dos Balés de Ação – que decorrem dos balés de corte e se singularizam por se constituírem de narrativas e personagens – divulgada pela dramaturgista e pesquisadora Rosa Hercoles, no artigo “Epistemologias em movimento”, publicado na revista Sala Preta, em 2010: 
"Em suas Cartas sobre a dança, publicadas em 1759, [Jean Georges Noverre] argumentava enfaticamente que a dança não deveria se restringir à mera execução mecânica de passos, mas sim, tornar-se capaz de transmitir significados; para tanto, seria necessário negar sua função decorativa."

Para ampliar a percepção sobre as chamadas danças "modernas" (tanto para quem cria, encena, como para quem observa), sugiro a leitura de biografias, como a de Isadora Duncan, ou de livros de história da dança que divulguem motivações das criadoras, como é o caso do seguinte trecho do capítulo "O corpo dançante: um laboratório da percepção", escrito pela historiadora de dança Annie Suquet:

"Em 1918, Helen Moller, uma das primeiras professoras que ensinou a dança moderna, afirma categoricamente: 'O centro gerador de toda expressão física autêntica se situa na região do coração […]. Todos os movimentos que emanam de uma outra fonte são esteticamente fúteis'. A professora americana visa aqui, de modo muito explícito, a dança clássica e sua predileção pelos movimentos periféricos, com os membros desenhando de certa maneira figuras no espaço. (…) Para Martha Graham, a partir da década de 1930, a bacia se tornou o reservatório das forças motoras. Ela é, com efeito, o 'centro de gravidade', isto é, o ponto de mobilização de toda a massa corporal e de seu transporte pelo movimento. O torso é sempre, com certeza, aos olhos da coreógrafa, aquela parte do corpo 'onde a emoção se torna visível pela ação conjugada da mecânica e da química corporais - coração, pulmões, estômago, vísceras, coluna vertebral'. O movimento propriamente dito é apenas a extrapolação dessa motilidade interna (em parte reflexa) a cuja percepção se trata de conectar." (p. 518-519, disponível em: <http://www.helenakatz.pro.br/midia/helenakatz21208964713.pdf>)

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